PORQUE NENHUM DE nóS SE IA IMPORTAR DE MORAR NUMA BIBLIOTECA…

segunda-feira, 2 de maio de 2011

"A Morte do Zé Pinóco" de Luís Costa

Hoje, deu-me para escrever um texto assim, a dar para o brejeiro. Porquê? Porque sim. Apeteceu-me. Gosto de ser um escrevinhador de banda larga. Segundas intenções? Não, nada disso. Tudo muito chão, muito denotativo, muito terra a terra. Se não receio o quê? Pôr em causa a minha reputação? Que reputação? Ora essa!


A Morte do Zé Pinóco
Até aos arrabaldes da sua juventude, o Zé foi um rapaz bem-parecido, faceiro e com o seu quê de marialva. Todavia, com o peso dos anos, a sua cativante figura foi perdendo sainete: o tronco arredondou-se, ainda que moderadamente, os olhos olheiraram-se bastante, o rosto insuflou-se, os cabelos desbotaram, o nariz alongou-se e amorangou-se também. E foi graças a esse longo vermelhote que o Zé conquistou o apodo de Pinóco, uma corruptela de “Pinóquio”, título sabiamente atribuído pelo insuspeito e sagaz olho clínico da criançada de Tolhidos de Baixo.
Até à morte do Mareto, Zé Pinóco foi apenas o trolha biscateiro da aldeia. De colher e talocha na mão, não havia tijolo, tijoleira, parede, cornija ou aresta que lhe fizesse frente. Após a partida do coveiro, passou a acumular as duas funções. Desde então, de pá e picareta na mão, não houve cova, morto nem caixão que lhe metesse medo. Com o tempo, como a aldeia estava velhota e vazante, esse foi sendo cada vez mais o seu ofício. E era por isso que o Zé Pinóco vivia só. Só, mas vivinho da silva! Chegou a ter uma amásia jeitosa, mas não lhe deu rebentos nem felicidade: era como um cubo de gelo da cintura para baixo, segundo constava por lá. Acabou por fugir para as Astúrias com um emigrante que dava ares de rico.
Certo dia, os seis catraios de Tolhidos, que andavam no monte a brincar aos cobóis — cinco bandidos e um xerife — desceram a encosta em grande cavalgada, disparando a má nova aos sete ventos: tinham dado de caras com o Zé Pinóco, morto e mais que morto, estendido no meio do chão, lá no cimo do carvalhal. Juravam a pés juntos que não tinham sido eles, com os revólveres de pinho. O Pinóco já lá estava, antes de andarem aos tiros, “todo estesicado e com as calças no fundo do cu”.
— No fundo do cu?! — exclamou a populaça, em uníssono, botando olhares telescópicos em redor. — Tó-diabo! Cruzes, canhoto!
Aqueles que podiam correr correram, aqueles que só podiam andar foram andando e aqueles que mal se mexiam ficaram-se pelos assentos. Mas mandaram os olhos pela colina acima, de tal modo que ainda se puseram lá no alto primeiro que todos os demais.
Como isto é um blogue, vamos ter de puxar a fita à frente, evitando assim ter de subir a barrigota do monte com aquela gente toda a arfar por todos os lados.
Então lá estava o pobre do Zé, esparregado no chão, que mais parecia uma representação burlesca do “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, com tudo ao léu, mas de pernas algemadas pelas calças. Para além das vergonhas, de anormal apenas se lhe via a nuca ensanguentada, repousando sobre uma áspera almofada de granito. A coisa de metro e meio — visto a olho nu —, estava a burra da D. Patrocínio, amarrada a um carvalho velho.
Após os primeiros gritos de espanto e de horror, os cérebros sequiosos começaram a querer compreender o que ali se passara. Foi uma autêntica zerbada de interrogações, de exclamações e de interjeições. Quem pudera ter feito tal coisa? Quem queria assim tão mal a um home tão bô? Por que diabo lhe haveriam de ter tirado as calças? Às tantas até fora apanhado desprevenido com elas na mão! Valesse-lhes Deus, Jesus Cristo, Virgem Santíssima! Ai! Ui! Oh!
Quando a tarde já descambava no amarelado horizonte, chegou um jipe da GNR, com uma nuvem de poeira a tiracolo e com dois guardas no bojo: o Fernandes e o Antunes. Afastaram o povo, sacaram uma fita do porta-luvas do todo-o-terreno e, de bloco e caneta na mão, puseram-se a tirar medidas a tudo, a perguntar tudo o que sabiam perguntar, a registar tudo e mais alguma, a cofiar os bigodes, a coçar as bochechas, as calças — nas partes mais íntimas —, o cabelo espetado debaixo do boné. Tudo isto no mais abafado silêncio, debaixo dos desolhares mais esbugalhados que alguma vez os haviam escrutinado.
Por fim, a troika militar lá pariu o seu veredicto: ali não houvera crime. Não houvera crime? Com’assim? Atão aquilo fora uma morte natural? Nem a terra os haveria de comer, se eles comessem uma peta daquelas! Que fossem mas era para aqui e para ali, prò diabo que os carregasse, prò carvalho velho lá da aldeia e prà…
— Adiante! — dizem-me os leitores blogosféricos.
Os leitores blogosféricos? Mas o que vem a ser isto? Em primeiro lugar, o termo não existe; em segundo, que eu saiba, os leitores não fazem parte das categorias da narrativa. Mas isto aqui é casa de Joana ou quê?! A conversa já chegou à copeira? Por acaso, até já tinha intenção de dar um pulito no tempo. Caso contrário… Vamos então voltar a puxar a fita à frente, que não temos guarda-chuva para esta saraivada de impropérios rurais. Schhhhhhttt, que está o cabo Antunes a dissertar:
— Aqui, s’hoube um crime, foi o própio morto qu’o cometeu! Tudo o resto foi legítma defeja e, nomeadamente, uma morte imboluntária causada por aquela pedra que che encontra dabaixo da cabeça da bítma. Ora, chegundo acabamos de confirmar, o falechido terá-se posto sobre aquelas três pedras lascas, qu’inda ali estão umas por cima das outras, com intenchão de s’aprobeitar da burra qu’ali está amarrada ò carbalho. Ora, como ela nom terá aprechiiado esse gesto, terá-le dado um couche no peito. Cá estão as pijaduras, igualjinhas aos cascos dela — confirmou, escancarando a camisa do Zé Pinóco. — A força do couche terá-o projectado d’encontro à pedra, qu’acabou por le causar a morte instantana. É por esse motibo, e não por outro, que a bítma tem as calças como tem. É esta a nossa bersão! É o que bamos escreber no ralatório.
E tinham razão os guardas. Eu, que sou o narrador, confirmo tudo, tintim por tintim, sem pôr nem tirar.
MORAL DA HISTÓRIA: não vou dizer.

Luís Costa

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