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segunda-feira, 2 de maio de 2011

"Farrapos" de Flávio Monte


Foto de Gérard Fourel

O negrume da cozinha triste tinha quatro paredes tumulares e uma entrada de luz teimando com a fuligem dos dias derradeiros. No interior do perpianho frio, o olhar ausente de um velho só, perdido e arredio, descaía sobre o repleto vazio de uma mesa tosca que não via. Sobre ela, como se estivessem suspensos no tempo, um ventre de pão, um par de canecas de barro baço e um prato sensaborão faziam sombra no oleado erguido da sombra inerte daquele frio chão.
No forro do jazigo, sob a fazenda puída de um chapéu torcido e amachucado, moravam as retinas de um poeta, forjando metáforas no verso do tempo, que já não soía ser como outrora: uma mesa prenhe de gente; alegres balidos do sangue pululando no ar; uma lareira refulgente; pequenos cupidos a brincar; cinestesias de amor num ninho de sonho exultante de luz e calor.
No limbo dos mundos, um simples felino de estimação, em jeito de caridade, emprestava vida à fiadura falida de um farrapo da Humanidade. Parecia lamber-lhe a recordação: que já fora seda de bandeira, verde farda militar, textura de lenço branco, tenda de saltimbanco, vela inchada sulcando o mar; que já fora o saco do pão, a toalha farta daquela mesa, o aconchego do cobertor, o sobretudo da dor, o burel da inteireza.
À contraluz, sem laivo de poesia, o olhar desumano veste o quadro de panos velhos amarrotados e sós, de andrajos sem serventia, trajos feitos de agonia, trapos negros de nós. À contraluz, uma cortina de esquecimento vai varrendo a dor do nosso olhar. À contraluz, o inferno que não queremos ver: um velho fechado num necrotério, sem refrigério, a desviver.


Flávio Monte, Alto-Relevo

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