PORQUE NENHUM DE nóS SE IA IMPORTAR DE MORAR NUMA BIBLIOTECA…
domingo, 13 de novembro de 2011
"Nos Campos de Flandres" de John McCrae
In Flanders’ Fields
In Flanders’ Fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place; and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.
We are the dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved, and were loved, and now we lie
In Flanders’ Fields.
Take up our quarrel with the foe:
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high.
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow
In Flanders’ Fields.
NOS CAMPOS DE FLANDRES - Tradução livre
Nos campos de Flandres crescem as papoilas
E florescem entre as cruzes que, fila a fila,
Marcam o nosso lugar; e, no céu,
Voam as cotovias, que continuam corajosamente a cantar,
Embora mal se ouça seu canto, por causa dos canhões.
Estamos mortos... Ainda há poucos dias, vivos,
sim, nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poente
a rebrilhar, e agora eis-nos, todos deitados
nos campos de Flandres.
Continuai a nossa luta contra o inimigo;
A nossa mão vacilante atira-vos o facho:
mantende-o bem alto. Que, se a nossa vontade trairdes,
nós, que morremos, não poderemos dormir,
ainda mesmo que floresçam as papoilas
nos campos de Flandres.
Tradução/adaptação de Pedro Luna
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
"Fado Tropical" de Chico Buarque e Ruy Guerra
terça-feira, 30 de agosto de 2011
"Despedida" de Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.
Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.
Rubem Braga
domingo, 14 de agosto de 2011
"Ao Espelho" de Margarida Rebelo Pinto

Há qualquer coisa de profundamente irresistível nos homens que nunca deixam de ter ar de rapazes que jogam à bola e vão a pé para o liceu. O olhar aceso de quem acabou de roubar chocolates da dispensa, o andar errático, os cabelos sempre despenteados, as mãos claras, direitas e sem marcas do tempo e o riso tímido como se fosse sempre a primeira vez. São meninos para sempre e podem viver para sempre no coração de uma mulher.
Tu és assim uma espécie de rapazinho capaz de grandes tropelias que esconde a idade atrás da candura que nunca perdeste, apesar de todas as marcas que foste herdando dos dias; a infância guardada numa caixa escondida debaixo da cama, a adolescência dos copos e das drogas leves, o teu melhor amigo que roubou a miúda de quem gostavas no Verão em que fizeste 18 anos, a primeira vez que andaste à pancada, o medo do outro ser mais forte e de se rirem de ti, a vontade de sair de casa e abraçar o mundo, e depois a solidão repartida entre as mulheres que desejaste e nunca tiveste e as outras, as que te incendiavam o corpo e te deixavam o coração em pedra porque nunca as amaste.
Depois cresceste, começaste a trabalhar, a usar fato e gravata quando era preciso e agora, todas as manhãs, ao espelho, perguntas à tua imagem quem és tu afinal, a viver numa cidade que não é tua nem de ninguém numa casa pequena demais para os teus sonhos que se dissolvem no vapor do duche da mesma forma que já perdeste uma ou duas mulheres que não soubeste ou quiseste amar da forma certa, aquela que faz com que as pessoas continuem juntas pela vida, como se tivessem sido separadas à nascença e um fio invisível as voltasse a unir para sempre. E perguntas à tua imagem onde vês um homem mais baixo, menos belo e menos inteligente do que na realidade és se essa mulher já passou pela tua distracção ou se a divina providência ainda ta pode trazer, vestida de Primavera com os cabelos compridos e um sorriso tão sem idade como o teu. Imaginas a sua chegada como se descesse de um baloiço suspenso das nuvens, as pernas compridas e os braços estendidos, o cheiro adocicado da pele clara, a boca a pedir atenção e o olhar a perguntar-te se a vais escolher, quando foi ela que já te escolheu e só te está a dar a ilusão que és tu que mandas nas tua vida.
Ao espelho, onde vês o reflexo entre o homem que és e aquele que gostarias de ser, respiras fundo e desejas que essa mulher chegue um dia, mas não demasiado cedo para te assustar nem demasiado tarde porque entretanto pode aparecer outra e tu vais deixar-te ir, convencido que é essa e não eu a mulher da tua vida.
O que tu não sabes, meu querubim cansado, é que do outro lado do espelho eu te vigio, como se fosse o teu avesso e te protejo, como se fosse o teu presente, e te desejo, como se pudesse ser o teu futuro.
Mas é ainda demasiado cedo, é ainda tempo de guardar no silêncio dos dias a vontade de te querer. É ainda de manhã e tu estás atrasado para o trabalho e eu estou adiantada na tua vida, por isso respiro fundo do outro lado da tua imagem e espero, sentada no baloiço, lá mesmo em cima, para que não me vejas, que um dia dês o salto para o outro lado da tua vida e sejas quem sempre sonhaste para que te vejas ao espelho como eu já te vejo, como tu és.
"Pequenos Gestos" de Margarida Rebelo Pinto

Não nasci com asas, mas o céu já era meu quando virava a cabeça e o avistava por entre as árvores. A minha mãe diz que aprendi a subir às árvores mesmo antes de começar a andar: ainda gatinhava quando os meus pais apanharam o primeiro susto. Eu subia às árvores com a minha irmã Matilde, ficávamos horas e horas escondidos lá em cima a espiar o mundo, enquanto os outros miúdos tentavam subir ou se conformavam em trepar árvores mais baixas.
Gostávamos de nos pendurar nos ramos e de ficar a balançar para a frente e para trás como se fosse um trapézio. Por vezes saltávamos de uns ramos para os outros, tal e qual como faziam os macacos que vinham ao nosso terreno roubar fruta das árvores.
Eu perseguia-os por entre os ramos e eles pareciam rir-se na minha cara. Ou talvez pensassem que eu era um macaco como eles, apenas de uma espécie diferente, da espécie que usa calções vai à escola.
O meu pai lia muito, ao serão, depois do jantar. Romances e livros de filosofia. A filosofia sempre foi a sua paixão. A filosofia e o mar. De manhã cedo, via-o a sair para praia com a prancha de surf debaixo dos braços. Durante as férias ao aos fins de semana ia com ele, e foi assim que aprendi a fazer surf ao mesmo tempo que coleccionava letras e números.
O mar e o céu vivem de mãos dadas no horizonte. São como siameses que o universo separou para que a terra pudesse existir. Sou mais feliz dentro de água ou acima da terra, e por isso decidi, no cimo das árvores que um dia ia ser piloto e sobrevoar o Mundo. Sempre quis viajar, conhecer todos os continentes, aprender várias línguas, viver em muitas cidades até descobrir um lugar perfeito onde o mar e o céu se encontrem sempre com o meu olhar. Uma terra tranquila sem guerras e com sol, um segredo escondido que não venha em nenhum mapa e onde não tropece em turistas de chinelos caros e chapéus de palhaço rico.
O que eu nunca pensei, minha pequena fada que me esperas ao final da tarde numa casa branca cujas janelas se encontram com o horizonte em que ao siameses se juntam, é que posso voar em terra e mergulhar nas ondas sempre que te vejo, posso chegar ao céu sem ligar os reactores e deslizar sobre as águas com a perfeição dos pequenos gestos.
Não sei se é a isto que os deuses chamavam amor, mas cada vez que chego e tu me abres o portão para me deixar entrar no teu corpo e no teu coração, sinto que todos os elementos estão sob o mesmo tecto. O teu corpo é como uma concha, o teu olhar como um rio; os teus braços uma ilha e o teu peito a minha casa.
Não sei de que é feito o amor, nunca descobri o seu segredo, mas sei que ando lá perto, que perto de ti, nos mais pequenos gestos, há uma espécie de amor que transpira no ar e transborda como uma onda e que me atira para aquele lugar perfeito que só existe no meu coração.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
"Sonho Paranormal" de Autor Desconhecido

Neste final de semana conversava com amigos sobre os sonhos, significados dos sonhos e assuntos relacionados.
Um dos colegas relatou sua experiência com sonho paranormal e após nossa conversa me lembrei de um texto que havia lido no livro “No Mundo dos Sonhos”, Ed. Abril Livros o autor não foi mencionado.
Este é o texto que relata uma experiência com sonho paranormal.
Quando rapaz, o químico aeroespacial Edward Butler não acreditava muito em sonhos e nunca havia ouvido falar nos chamados sonhos paranormais. Contudo, em 1959, Butler teve um sonho que jamais esqueceu. O sonho e seus efeitos correlatos afetaram E. Butler profundamente e, em 1988, pela primeira vez, ele contou-o em um programa de televisão.
O sonho ocorrera quando Butler tinha 25 anos e trabalhava em New Jersey, numa empresa que produzia motores e combustíveis para foguetes. No sonho, estava sentado em seu laboratório, em mangas de camisa, quando o edifício foi sacudido por uma explosão violenta. Correu para fora e descobriu que o laboratório ao lado estava em chamas. Alguém gritava lá dentro. Ele penetrou por entre a fumaça e as labaredas e encontrou sua colega de trabalho, Rita Dudak, queimando como uma tocha, em chamas da cabeça aos pés. Butler sonhou que a puxara pelas pernas e a levara para o seu laboratório, onde a colocara sob os chuveiros de emergência, apagando o fogo.
Ao acordar, Butler avaliou alguns detalhes curiosos do sonho. Era esquisito que estivesse trabalhando com mangas de camisa, pois o pessoal do laboratório sempre vestia aventais a prova de fogo, uma vez que as experiências perigosas assim o exigiam. Também era estranho que Rita Dudak estivesse sozinha em seu laboratório. Três assistentes normalmente estavam com ela. Mas Butler deu de ombros ante a possibilidade de resolver a charada e esqueceu o sonho.
Porém, o sonho não queria desaparecer. Tornou a voltar, não todas as noites, mas com bastante freqüência e persistência, durante alguns meses.
E a coisa aconteceu. Na tarde de 23 de Abril de 1959, Butler batia um relatório à máquina e, como a área era segura, os regulamentos permitiam que se trabalhasse em mangas de camisa. Na porta ao lado, Rita Dudak realizava uma experiência com algumas substâncias altamente explosivas. Ela estava em pé, por trás da proteção de dois escudos plásticos, mas chegara à um ponto da experiência em que precisava tocar nos aparelhos. Por isso, levantou um dos escudos e empurrou outro de lado.
No momento em que Rita livrou-se dos escudos, as substâncias explodiram, estilhaçando vidros e espirrando combustível no rosto, nos ombros e nos braços dela. Em alguns segundos seu rosto ardia em chamas. O calor era tão intenso que os óculos protetores derreteram em seus cabelos. Ela tinha a certeza de que iria morrer …
Butler surgiu pela porta neste minuto. Ele e Dudak estavam sozinhos naquele inferno, exatamente como no sonho. Dois dos assistentes dela tinham ido tomar café e o outro fugira atemorizado após a explosão. Butler lembra-se que passava pelas labaredas gritando o nome de Dudak. Quando a encontrou, viu que estava do mesmo jeito que aparecia no sonho. “Ela queimava como um pavio”, recorda Butler, “completamente em chamas; o corpo inteiro ardia.” Por um instante, ele interrompe a narração, mas depois continua: “Acho que comecei a agir como um autômato porque estava representado o papel do sonho. Eu deveria ser capaz de agarrá-la pelas pernas, puxá-la para fora das labaredas, levá-la ao meu laboratório (…) e colocá-la sob o jato do chuveiro.”
Rita Dudak passou sete longos meses no hospital
sábado, 9 de julho de 2011
"Ardina" de Maria Judite Carvalho, O Homem do Arame (1979)

Aquele rapazinho que todas as tardes, ao fim da tarde, anda a vender jornais por entre carros que estão quase a parar, que estão quase a arrancar, na faixa central da Avenida, não repara que a morte lhe passa tangentes constantes. É decerto um rapazinho que ainda não conhece nada da morte, nem mesmo quer saber se ela existe. Sabe-se leve e rápido, sabe que tem bons reflexos. Por isso, arrisca. Ao menino e ao borracho, diz o povo... Mas eu lembro-me, sempre que o vejo, sempre que por uma ou por outra razão subo a Avenida dentro de um dos traçadores de tangentes (não quero pensar em secantes), de um conto que li em tempos, porque ai esta nossa cultura livresca... Não sabíamos nada, ainda pouco sabemos, das pessoas vivas, de como elas vivem e lutam, mesmo só aqui, nesta nossa cidade, grande e confusa cabeça do corpo frágil que é Portugal, e vamos recordar um ardina de papel, um rapazinho pequeno encontrado há muitos anos num livro, brasileiro ainda por cima. Era também, salvo erro, um rapazinho numa cidade grande, um menino de periferia, do morro, talvez. Ao que me lembro vendia jornais e pendurava-se nos eléctricos para chegar mais depressa ou talvez por aventura, sim, creio que era por aventura, que o fazia. Até ao dia em que caiu e a aventura terminou. Recordo esse ardina dentro de um livro, ao olhar para este, dentro da vida, e a brincar - a brincar? - com a morte, ziguezagueando, por entre ela, enquanto apregoa os jornais da tarde.
Cuidado menino, estou quase a gritar. Mas nunca vou a tempo. Porque a luz está, de súbito, verde, e ele está, de súbito, longe. Dir-se-á que andam à mesma velocidade, ele e a luz.
terça-feira, 5 de julho de 2011
"Anéis do Meu Cabelo" de António Botto
sexta-feira, 1 de julho de 2011
"O aviso de Galadriel" de J.R.R. Tolkien
sábado, 18 de junho de 2011
"NADA DE NOVO NO FRONT (um trecho)" de Erich Maria Remarque

Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.
Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.
Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.
Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.
Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.
E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.
Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.
Levanto-me.
Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.
Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".
Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.
"LOBOS E CAPUZES VERMELHOS"

Uma nova versão do conto da chapeuzinho vermelho e o lobo
“Quanto mais doce a língua, mais afiados os dentes.”
Charles Perrault
Era uma vez uma garotinha que foi visitar a sua Vovó. O nome dessa garotinha era Chapeuzinho Vermelho e, mais tarde, ela se tornaria protagonista de um famoso conto de fadas que teve várias versões, umas contadas oralmente, outras escritas (a partir daquelas versões orais) — por escritores tão badalados como os Irmãos Grimm e Charles Perrault e outros nem tão famosos assim.
Mas vamos falar de Chapeuzinho Vermelho. Aquela mesma. Vestido curto, olhos claros, rosto inocente e lindo, um capuz e uma capa vermelhos. Ela carregava uma cesta cheia que ia levar para a casa da Vovó.
O Lobo a viu no instante em que ela entrou no bosque. Ele a desejou mais do que tudo e, com seu desejo, ele condenou-se.
Durante um tempo, o Lobo apenas acompanhou-a, sorrateiramente por entre a densa vegetação, os olhos amarelos faiscando, o pelo eriçado, o desejo aumentando.
Então, ele a abordou; não bruscamente como seria de se esperar, mas suavemente.
— Olá, linda garotinha — disse o Lobo.
— Olá — respondeu ela.
— Não sente medo, andando sozinha pelo bosque, garotinha?
— Por que sentiria? E meu nome não é garotinha, é Chapeuzinho Vermelho.
— Um nome apropriado.
— Isso não importa. Nomes nem sempre são apropriados, são apenas nomes. Agora tenho que ir.
— Por que a pressa?
— Vou para a casa da Vovó. Tenho que levar essa cesta para ela.
— Mas sua companhia me é agradável. Gostaria de conversar mais com a senhorita.
Chapeuzinho Vermelho olhou-o demoradamente, de um modo que deixou o Lobo inquieto. Chapeuzinho passou a língua pelos lábios e sorriu.
— Muito bem. Mas eu realmente não posso demorar muito. Vovó pode ficar preocupada.
— Sei que ela vai entender, quando você disser com quem estava.
—Sim.
Ela despiu-se do capuz e soltou os cabelos, macios, longos, claros como seus olhos. Olhos que eram verdes e azuis dependendo da luz.
A claridade de fim de tarde, filtrada por entre os galhos, era dourada, e o cheiro da relva era fresco e macio.
O Lobo desviou os olhos, o coração acelerado. Foi Chapeuzinho quem primeiro falou:
— Nada a dizer?
— Como? — O Lobo parecia confuso, piscou e, recuperando-se, sorriu. — Sim, naturalmente. Não quer sentar-se?
Ela sentou-se e colocou a cesta de lado. O Lobo deitou-se ao seu lado e sorriu.
— Você é uma garotinha estranha.
— Não sou tão nova quanto aparento.
— Entendo.
— Eu sei.
— Bem, qualquer pessoa teria medo em andar sozinha por esse bosque.
— Eu não. Sabe por quê?
— Não.
— Por que eu sei o que é a coisa mais perigosa do bosque, e também sei que ele não me feriria. Não aqui, não agora. Estou errada?
Um brilho de raiva passou pelos olhos do Lobo, mas tão rápido que provavelmente Chapeuzinho nem percebeu. Ou isso ou simplesmente ignorou-o.
— Não esteja tão certa.
— Mas eu estou.
O Lobo ergueu-se e sumiu por entre as folhagens. Era como se nunca estivesse estado ali. Mas ele ainda a observava, de algum lugar no bosque.
Chapeuzinho ergueu-se, arrumou o capuz, limpou a grama do vestido e pegou sua cesta; ela retomou sem caminho e, em nenhum momento, olhou para traz. O Lobo não percebeu que a mão que não segurava a cesta tremia levemente. O Lobo, então, teve uma idéia, e acelerou o passo. Chegaria primeiro à casa da Vovó.
A Vovó abriu a porta e morreu.
O Lobo não tinha tempo para sutilezas. Ele estava com pressa. Ele apoiou as patas sobre o peito da Vovó e começou a arrancar a pele e a carne da senhora. Uma enorme mancha vermelha como vinho antigo espalhou-se pelo assoalho e tornou-se preto no canto da sala. Ele arrancou o coração dela e colocou-o num prato sobre a mesa, recolheu um copo de sangue e colocou-o ao lado do prato.
Então limpou toda a sujeira, enfiou-se sob os lençóis e sobre a cama da Vovó.
E esperou.
Não teve que esperar muito. Logo ouviu Chapeuzinho Vermelho chamando.
— Entre — disse o Lobo, imitando a voz de uma velha senhora. — Entre, minha querida.
Chapeuzinho Vermelho abriu a porta, alegre, sorrindo, mas logo fez uma careta.
— Que cheiro estranho — disse ela.
— Não é nada. Não está com fome?
— Sim. Mas esse cheiro…
Chapeuzinho Vermelho largou a cesta no chão e disse:
— Para a senhora.
— Dispa-se.
— Sim, Vovó.
Ela obedeceu; tirou o capuz e o vestido, as sapatilhas e o pingente; novamente ela soltou os cabelos e agora seus olhos tinham uma tonalidade clara e suave.
— Queime suas roupas. — mandou o Lobo.
— Sim, Vovó. — Chapeuzinho jogou as roupas no fogo e ficou observando-as. O fogo dançava uma dança secreta.
— Agora, alimente-se. Você vai se sentir melhor.
— Sim, Vovó.
Ela sentou-se à mesa, comeu o coração de sua avó e bebeu o sangue.
— Agora, venha cá.
Ela caminhou até a cama, enfiou-se sob os lençóis e sentiu o pelo eriçado do Lobo. Ela aninhou-se junto a ele.
— Você não é minha avó — disse ela, calmamente.
— Não, não sou — respondeu o Lobo, desanimado. Ela era suave e macia como ele imaginara.
— Eu soube quando bebi o sangue. Pensei que fosse vinho, mas era sangue.
— Era.
— Tudo bem. Estava bom.
Ela passou a mão sobre o pelo do Lobo e fechou os olhos.
— Você me quer agora?
— Sim.
— Vai doer?
— Não muito.
— Eu confio em você — disse Chapeuzinho Vermelho e sorriu para o Lobo. — O que vem depois?
— Depois?
Ele não soube responder. Colocou carinhosamente a pata sobre ela, aproximou a boca da garganta dela e sentiu o cheiro dela. Ele lembrou-se de alguns tipos de flores que eram raras e desabrochavam apenas uma vez por ano; essas flores cheiravam assim. Como algo intocado e puro.
Na lareira, o fogo queimava as cinzas das roupas dela. Chapeuzinho Vermelho fechou os olhos. Na mesma hora a porta do guarda-roupas abriu-se e o corpo da Vovó, as entranhas penduradas e o rosto desfigurado numa expressão de surpresa e horror, parte da caveira aparecendo, apareceu como que para observar a cena com olhos esbugalhados.
— Que eu morrer, quero dizer. O que vem depois? — perguntou Chapeuzinho Vermelho.
— Não sei — teve que admitir o Lobo.
O Lobo beijou Chapeuzinho Vermelho primeiro, depois a matou rapidamente. Ficou com o focinho enfiado na ferida que lhe fizera na garganta, como se não quisesse mais sair de dentro dela.
Era alta madrugada e a lareira iluminava parcialmente o quarto. O Lobo estava sentado no chão, olhando pesarosamente para a cama. Chapeuzinho Vermelho, nua e morta, estava estendida sobre lençóis brancos manchados de sangue, os olhos fechados, calma como se estivesse dormindo. O Lobo não conseguira devorá-la. Mas por quê?, perguntava-se. Por quê? Ele não queria olhar para Chapeuzinho, mas não conseguia desviar os olhos.
— Por quê? — perguntava-se.
— Não é óbvio, animal estúpido? — disse a velha dentro do guarda-roupas. O Esforço de falar fizera escorrer sangue como baba de sua boca escancarada.
— Você deveria estar morta.
— Talvez. Mas minha neta não.
— Eu… sinto muito.
— Meio tarde para isso, não?
— Espere. Os mortos não falam.
— Não. Você está louco. É apenas isso.
— E o que importa?
— Você deve enterrá-la.
—
— Para que ela descanse em paz — insistiu a Vovó morta. — Você deve fazê-lo.
Com uma pá encontrada nos fundos e sob a lua cheia que era como um olho cheio de cicatrizes, ele cavou uma cova. Observado pelas criaturas do bosque, que se mantinham ocultas no escuro, pois ele era o Lobo, o ser mais perigoso do bosque, e todos o temiam, ele trouxe Chapeuzinho e colocou-a dentro da cova. Ele a cobriu de terra e voltou para dentro da cabana.
Sentou-se na cama, ergueu-se, pegou os lençóis e jogou-os no fogo da lareira; então fez uma tocha e começou a colocar fogo nos móveis e na madeira da casa.
Depois ficou observando o fogo erguer-se e consumir a casa rapidamente, como vermes na carne apodrecida.
Naquela noite, o Lobo subiu numa colina e uivou tristemente; mas dessa vez não era um lamento para a lua… Não, o lobo chorava por Chapeuzinho Vermelho.
Nessa noite, quando finalmente dormiu, o Lobo sonhou com seios cortados e flores brancas escurecendo rapidamente em um carmim que gotejava e gotejava. Ele andava por entre as flores e era como uma sombra maldita num lugar de luz e serenidade. Mas era uma paz falsa. Com seus sentidos aguçados ele podia perceber o mal, oculto nos cantos, entre as folhagens, na grama, nos espinhos que lhe arranhavam as patas. Ele exibiu os dentes, pontiagudos e a saliva acida. Começou a correr na direção do bosque e por um segundo viu uma mão acenando para ele, uma figura encapuzada (um capuz vermelho) ao longe. Então a figura desapareceu e ele duvidou que realmente a tivesse visto.
Ao amanhecer, ele voltou à casa da Vovó e lá havia apenas madeira queimada e cinzas, o esqueleto chamuscado de uma casa e nada mais. O Lobo deu a volta na casa e ficou diante da cova onde enterrara Chapeuzinho Vermelho. Os olhos dele estreitaram-se e ele recuou instintivamente. A cova fora violada, a terra revolvida. Ele farejou e escavou. Chapeuzinho Vermelho não estava lá.
Ele procurou pelo bosque e todos os habitantes da floresta, animais ou não, todos se esconderam. Então uma velha coruja aproximou-se e pousou num galho alto o suficiente para fugir se ele a atacasse e lhe contou o que acontecera.
— Foi tarde da noite — contou a Coruja. — Eu ouvi sons que não eram o da madeira crepitando no fogo ou mesmo carne velha cozinhando. Não. O fogo já se extinguira. Restara apenas uma fumaça de cheiro azedo subindo no ar. Era outro som. Como um eco de desespero. Era um cavar. Um cavar horrendo, cheio de angústia e terror. Não demorou e percebi de onde vinha. Vinha da cova de Chapeuzinho Vermelho. Seu tolo. Ela estava viva e tentava sair!
— Não. Impossível. Acha mesmo, Coruja, que não sei distinguir um corpo vivo de um morto?
— Sei que você bem o sabe, sim. Mas morta, eu lhe digo, ela não estava.
O Lobo estremeceu.
— Mas como é possível? — perguntou ele.
— E o que não é?
—
— Logo eu vi as pontas dos dedos de Chapeuzinho e o rosto dela e ela estava gritando e gritando e chorando. Ela arrastou-se para fora da cova, cuspindo terra, trêmula. Encolheu-se e ficou assim durante um tempo longo demais, não sei quanto. Então, ela ergueu-se e saiu da clareira e entrou no bosque. Eu a segui. Ela cambaleava entre as raízes até alcançar a trilha. Parecia desorientada. Uma figura estranha, coberta de terra e sangue seco. Ela caminhou até a estrada, onde caiu e ficou lá estendida, os olhos fitando vazios o céu, enquanto ao longe um lobo uivava… até que um carro passou e a levou.
O Lobo nada disse. A imagem de Chapeuzinho lutando para sair da cova o perseguia.
Mais tarde, quando a bala dos homens entrasse em sua carne e ele caísse no rio gelado, sendo arrastado pela forte correnteza, enquanto as balas ainda lhe eram disparadas, ele se lembraria do dia em que, depois de muitos anos, ele decidira novamente vestir a roupa e a aparência dos homens para ir à Vila dos Cantos à procura da garota que ele assassinara.
O Lobo chegou à vila ao amanhecer de um dia cheio de nuvens carregadas e chuva fina e fria. Encolhido dentro de um sobretudo surrado e fora de moda, ele atravessou a pequena ponte que era a entrada para a vila. Peixes nadavam e pulavam na água clara. Do outro lado da ponte, havia uma praça e na praça, uma igreja, bancos, árvores e um pub. O nome do pub era “A Toca” e o Lobo achou aquilo um bom presságio. Entrou no pub e o mesmo estava quase vazio. O Lobo foi até o balcão e um homem muito magro e muito alto perguntou-lhe o que queria.
— Algo para esquentar — disse o Lobo.
O homem assentiu e serviu-lhe uma dose de algo que o Lobo achou ácido demais, mas que realmente espantou um pouco do frio. Ele olhou ao redor. Dois homens jogavam xadrez de modo demasiadamente lento, como duas estátuas sem a menor vontade de mover-se. Uma mulher de roupas e gestos vulgares olhava triste um quadro na parede; no quadro, uma casa feita de doces. A mulher chorava silenciosamente.
O homem alto disse alguma coisa que ele não entendeu.
— Como?
— Perguntei se está só de passagem, veio visitar alguém ou o quê? — perguntou o homem, educadamente.
O Lobo pensou em dizer que estava só de passagem, mas pensou melhor:
— Vim visitar alguém, mas estou com um problema. Não sei onde essa pessoa mora. Talvez possa me ajudar.
— Como assim? Vem visitar uma pessoa e não sabe onde ela mora?
— Faz muitos anos que estive aqui — disse o Lobo, refletindo que isso era verdade.
— Muito bem — disse o homem alto, meio desconfiado. — Quem?
— Chapeuzinho Vermelho.
A expressão de desconfiança do homem mudou para pesar.
— Então você não sabe?
— O quê?
— Algo horrível aconteceu a ela.
— O que aconteceu?
— Ela foi atacada por ladrões quando foi visitar a avó dela. Os malditos a largaram no meio da estrada, em estado deplorável. E queimaram a casa da avó da menina. Pode acreditar? Na minha opinião, deviam ser alguns desses loucos que iam visitar a velha às vezes. Dizem que ela era bruxa, então se morreu queimada, foi algo bem merecido. Porém, Chapeuzinho não tinha que ver isso. Mas você é o quê? Algum parente?
— Isso. Um parente.
O homem alto assentiu, ensinou o caminho para o Lobo e disse que não precisava pagar a dose, é por conta da casa. O Lobo agradeceu e virou-se. Quase bateu de cara com a mulher que antes olhara o quadro. Os olhos dela ainda estavam úmidos.
— Eu o conheço? — perguntou ela. Ela o olhava atentamente, tentando lembrar de onde conhecia aquele homem de roupa surrada e modos estranhos. Sim, ele não era realmente estranho? O jeito como ele olhava tudo, como caminhava. Como se não se lembrasse mais o modo certo de fazê-lo.
— Não creio — respondeu ele, e saiu pela porta.
A casa de Chapeuzinho Vermelho ficava no fim de uma rua que subia num declive quase totalmente vertical, mas o Lobo, acostumado a correr no bosque por longas distâncias, não teve dificuldade em alcançá-la. Ele não bateu na porta imediatamente. Ouviu um rosnar e quando olhou, viu um enorme cachorro preto, o pelo curto e liso, latindo para ele. O Lobo exibiu os dentes e deixou o cachorro vislumbrar seus olhos amarelos. Foi o bastante para que o cachorro saísse correndo.
Quando tornou a olhar para a porta, levou um susto. Uma mulher estava parada na porta, olhando-o curiosa. A mãe de Chapeuzinho, adivinhou o Lobo.
— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou ela.
— Sim, quer dizer, estou procurando Chapeuzinho Vermelho.
A mulher olhou-o.
— E quem é o senhor? — perguntou ela.
— Mamãe?
Ele reconheceu a voz de Chapeuzinho e estremeceu. A chuva batia em seu chapéu e ele encolheu-se mais ainda.
— Entre — disse a mulher, e subiu os degraus que levavam ao andar superior.
O Lobo entrou e era uma sala espaçosa e confortável. Um degrau a separava da sala de jantar, onde havia uma enorme mesa de carvalho. Sobre a mesa, uma espingarda. O Lobo andou até a arma e pegou-a.
Estava examinando-a quando ouviu uma voz ríspida às suas costas:
— Solte-a já.
Ele virou-se. Um homem estava parado na porta, segurando uma caixa de balas e o olhava carrancudo. O Lobo soltou a arma.
— Desculpe. Eu não pretendia… Estava apenas admirando-a.
O homem passou por ele, colocou a caixa de balas sobre a mesa, ao lado da espingarda, e perguntou:
— Quem é o senhor?
— Amigo de Chapeuzinho.
— Estranho. Eu nunca o vi. Qual o seu nome?
— Wolfson.
— Nome engraçado.
— Nomes são apenas nomes.
— É verdade.
— Sua filha me disse isso.
— Como sabe que ela é minha filha?
— Ela o descreveu, certa vez.
— De onde a conhece?
— Ela disse para você subir — disse a mãe de Chapeuzinho, parada na escada.
Ele subiu. O quarto dela era o segundo no corredor. Chapeuzinho Vermelho estava no peitoril da janela, os joelhos apoiando o queixo, e olhava para a rua. A mãe de Chapeuzinho fechou a porta e o Lobo ouviu-a afastar-se.
— Não achei que o veria de novo — disse ela.
— Pensei que estivesse morta.
Ela virou-se para ele. Ainda estava pálida. Não havia nenhuma cicatriz em seu pescoço, apenas em seus olhos. Ela olhou-o com tristeza.
— Você cuidou para que isso fosse verdade, não foi?
Ambos falavam baixo, inconscientemente.
— Sim — respondeu ele, encabulado.
— Mas eu não morro tão fácil. Como pode ver, eu cicatrizo rapidamente também. Mas acordar dentro de uma sepultura, bem, não é fácil para uma garota de dezesseis anos. Não é fácil para ninguém, de qualquer modo.
— Sinto muito.
— Eu sei que sente, lobinho.
Ele estremeceu.
— Infelizmente eu não morri. Alguma coisa que minha avó fez comigo, imagino. Desde que eu era pequena, meus machucados, por mais que parecessem sérios, saravam depressa. Ela era uma bruxa, você deve saber. A minha avó.
— Ouvi algo.
— Você veio me matar?
Ele demorou a responder.
— Não sei — disse, finalmente.
— Não sabe ou não pode?
Ela desceu da janela, sentou-se na cama e olhou para o espelho no outro lado do quarto.
— Você… — começou a dizer o Lobo.
— Eu queria morrer, sabe. Por isso eu fiz tudo que me mandou fazer na casa da minha avó.
— Mas por quê?
— Por que eu queria morrer? Esqueça isso.
— Foi sua avó que me disse para enterrá-la. Levei um susto danado. Ela estava morta e falando comigo.
— Você deve ter imaginado.
— Talvez — disse ele, mas duvidava.
Os dois ficaram em silêncio. O Lobo andou até a janela. Depois virou-se e examinou o quarto atentamente. Havia um calendário perto do espelho; uma imagem de um lago profundo e a data: 18 de novembro de 1917.
— Não imaginei que tivesse passado tantos anos — Ele se referia ao tempo em que abandonara a humanidade e se tornara lobo. Ele a olhou. — Como me reconheceu?
— Lobo em pele de homem. Eu o reconheceria de qualquer modo. Em qualquer lugar.
— Eu vou embora.
— Por que veio aqui?
— Não sei. Talvez você seja tão bruxa quanto sua avó e tenha me enfeitiçado — disse ele, meio brincando, meio sério.
Ela sorriu, andou até ele e beijou-o, um beijo quente, demorado.
— Esse é o único feitiço que eu conheço.
—
— Eu ainda tenho seu cheiro em mim — ela disse e afastou-se. — Desde aquela noite.
— Eu vou embora.
— Você volta para me ver?
— … Não. Esse lugar é perigoso demais para os da minha espécie.
— Então eu irei vê-lo no bosque.
— Eles permitirão que você volte lá, depois do que aconteceu?
— Eles não precisam saber.
A mãe de Chapeuzinho Vermelho entrou sem bater e encarou-os, desconfiada.
— Seu pai está inquieto com vocês dois aqui em cima, sozinhos — disse ela.
— Já estou de saída — disse o Lobo.
Na semana seguinte, Chapeuzinho Vermelho foi encontrar-se com o Lobo no bosque. Ela havia dito à sua mãe que iria dar uma volta pela cidade e, sim, mãe, vou me manter longe do bosque.
Quando alcançou a trilha que ia dar na casa de sua avó, Chapeuzinho soube que estava sendo observada. O Lobo saltou diante dela, o pelo escuro, os olhos amarelos, e observou-a atentamente.
— Você não me assusta – disse ela.
— Eu sei.
Ele farejou o ar.
— O que foi?
— Você foi seguida.
— Tem certeza? Eu tomei bastante cuidado e…
A bala acertou-o no ombro e ele ganiu. Chapeuzinho gritou. O Lobo caiu, pesadamente. Então, ergueu-se depressa.
Cavalos aproximavam-se rapidamente.
— Fuja — gritou Chapeuzinho.
Ele correu, um tanto lento por causa do ferimento, mas ainda rápido. As balas passavam por ele, arrancando lascas de árvores e terra. Ele olhou para traz e viu os cavalos e os homens armados sobre eles. Ele correu como nunca correra antes e, apesar daquele bosque ser sua morada a centenas de anos e o Lobo conhece-lo como a si mesmo, eles o encurralaram no alto de um precipício. Ele olhou para baixo e viu um rio sinuoso e que seguia a perder de vista. Olhou para traz e viu os homens armados chegando depressa. E saltou.
Os homens desceram dos cavalos e ainda estavam atirando nele quando ele atingiu a água e foi arrastado pela força da água.
Chapeuzinho Vermelho, de joelhos no meio da trilha, chorava.
Noite. Lua cheia. Não há uivos essa noite no bosque.
Esse texto foi retirado do Não Diga Nada (http://naodiganada.blogspot.com/).
"Chapeuzinho Vermelho" de Millôr Fernandes

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".
Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.
Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.
Extraído do livro "Lições de Um Ignorante", José Álvaro Editor - Rio de Janeiro, 1967, pág. 31
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