PORQUE NENHUM DE nóS SE IA IMPORTAR DE MORAR NUMA BIBLIOTECA…

terça-feira, 31 de maio de 2011

"Árvores do Alentejo" de Florbela Espanca



Horas mortas… Curvada aos pés do monte
A planície é um brasido… e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A ouro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota d´água!

"Soneto" de Marquesa de Alorna



Esperanças de um vão contentamento,
por meu mal tantos anos conservadas,
é tempo de perder-vos, já que ousadas
abusastes de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento
meditando nas horas malogradas,
e das tristes, presentes e passadas,
farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,
que trocarei ligeiras fantasias
em pesadas razões do desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias,
a quem te logra, o gosto soberano,
vem dominar o resto dos meus dias.

"Quando Fazíamos Amor" de Hugo Ramos



Tudo o que faço é sentir a tua falta... Do que éramos...
Tudo o que faço é beijar-te através dos versos...
Tudo o que faço é ouvir a pauta... Do que déramos...
Tudo o que faço é Amar-te nos céus imersos...

Esta escuridão é a minha casa agora...
Esta alma perdida vagueia por esse mundo fora,
Sem destino certo... Sem nada por perto...
Um hino incerto... Para o qual desperto...

As saudades que eu tenho de te Amar
Loucamente como tudo... Tudo o que me anima,
Como não havia mais nada... Só o nosso clima...

Quando fazíamos Amor costumavas chorar...
Dizias eu Amo-te como às estrelas lá em cima,
Eu e tu somos os versos de uma perfeita rima...

sábado, 21 de maio de 2011

"Este Inferno de Amar" de Almeida Garret



Este Inferno de Amar
Este inferno de amar - como eu amo!-
Quem mo pôs n'alma... quem foi?
Esta cham que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói-
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão seran a dromi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! desperatar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

"Partem Tão Tristes..." de João Roiz de Castelo-Branco, Cancioneiro Geral



Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

"Teus Olhos" de Florbela Espanca



Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas...
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Berço vindo do Céu à minha porta...
Ó meu leito de núpcias irreais!...
Meu sumptuoso túmulo de morta!...

"Os Versos Que Te Fiz" de Florbela Espanca



Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Florbela Espanca

quinta-feira, 19 de maio de 2011

"Um Poema" de Sophia de Mello Breyner Andersen



“Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silencio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente!”

"As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino



“(…) aquilo que ele procurava era sempre algo que estava diante de si, e mesmo que se tratasse do passado era um passado que mudava à medida que ele avançava na sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, digamos não o passado próximo a que cada dia que passa acrescenta um dia, mas o passado mais remoto. Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.”

"O Silêncio da Planície" de Gil de Olive



Olhando ao longe, vejo o céu se unindo a superfície,
fico aqui admirando essa verdejante planície,
bonita, mas monótona aos olhos de um sonhador.
Vejo nesse silêncio, os rastros de uma saudade,
essa bela natureza, só me mostra a infelicidade,
que tira toda a alegria, e deixa o coração sofredor.

Olhando tante verde, e nuvens brancas no céu,
perante meus olhos, parece que existe um véu,
que os horizontes, está me proibindo de ver.
Nenhum barulho, o único que ouço vem do cavalo,
choro, quero pronunciar um nome, mas me calo,
esse silêncio da planície, respeita o meu sofrer.

Tudo se incorpora a essa tristeza do meu coração,
sinto que a natureza, enfeita com a solidão,
deixando a planície silenciosa, e tão quieta.
Paisagem que o fim, minha vista já não alcança,
sei que esta encoberta pela nuvem da esperança,
impedindo que tudo possa ver, o solitário poeta.

Mas agora sairei, ficarei o dia todo cavalgando,
nesse desespero, por mais silêncio, procurando,
por um longo tempo, na planície verde ficarei.
Pediria, a natureza que viesse em meu socorro,
mostrando me um óasis, ou talvez um morro,
mas...continuo caminhando, se saio daqui não sei.

"A Cidade" de Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 18 de maio de 2011

"Coisas Que nos Deixam Muito, Muito Felizes" de Manuel António Pina



A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina
Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde

sábado, 14 de maio de 2011

"O Buzio de Cós" de Sophia de Mello Breyner



Este búzio não o encontrei eu própria numa praia
Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada.

"Poema de Amor de António e Cleópatra" de Sophia de Mello Breyner Andresen



Pelas tuas mãos medi o mundo

E na balança pura dos teus ombros

Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"Soneto do Epitáfio" de Bocage



Bocage e as Ninfas
Óleo de Fernando Santos. Museu de Setúbal



Lá quando em mim perder a humanidade
mais um daqueles, que não fazem falta,
verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
que engrole sob-venites em voz alta;
pingados gatarrões, gente de malta,
eu também vos dispenso a caridade:

mas quando ferrugenta enxada idosa
sepulcro me cavar em ermo outeiro,
lavre-me este epitáfio mão piedosa:

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
passou a vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro."

"Soneto de Todas as Putas" de Bocage




Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques, pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.

sábado, 7 de maio de 2011

"A Grande Esfinge do Egipto" de Fernando Pessoa



A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo...

Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e mim!...


Fernando Pessoa

"Foi Por ti que Criei as Rosas" de Lininha Cbo



Lembras-te?
Foi por ti que reparei nas rosas...
Nunca lhes tinha olhado o toque suave das nervuras coloridas
Creio que nunca lhes sentira o toque húmido,
suave....quase etéreo das pétalas
...E o aroma? Foi por ti que o inalei...
Cada uma tem um óleo essencial
um toque de sândalo ou manhãs claras
aquelas em que acordamos com tintas de cristal
pela luz das paredes que
na noite anterior se encheram de Luar...

Foi por ti criei as rosas
como se elas nunca tivessem existido sobre a Terra
como se um pintor qualquer vindo do Oriente
lhes tivesse emprestado tonalidades únicas
em papel de arroz e
o pôr do Sol para se vestirem
e a manhã clara para se desnudarem
nas tuas mãos...
as mesmas mãos que me fizeram criar as rosas...

Dei-lhes olhar...
Nunca tinha reparado que tinham olhar....
Dei-lhes voz....
Nunca tinha escutado como murmuram melodias silenciosas
e fecham as pálpebras fingindo não ver

Foi por ti que lhes dei espinhos
O toque essencial para serem diferentes
e terem alma... a mesma alma que me fez criar as rosas
para ti......

Lininha Cbo

"A Rosa de Hiroshima" de Vinicius Moraes

Pensador



Posso não saber bem por onde vou porque o caminho se faz caminhando mas, como diz o poeta, sei que não vou por aí .


ACCB

"Era Londres e Não Parecia..." de Cleopatra Moon



Sentava-se todos os dias
à janela de metade da Vida
Imaginava-o sereno,…com jornal à frente
e chávena de café sob os lábios aguardando
o arrefecimento do aroma quente

Os olhos
tinham flores de sorrisos espalhados
no ar da manhã, na neblina as noticias
ficavam penduradas da torrada quente

Era a brancura do ar que
em redor poderia ser
o som de uma guitarra portuguesa

Era um homem doce e calado…
mas por dentro.

Bebia então o café
mergulhando na chávena,
bem no fundo da cor escura,
os sonhos que a vida lhe deixara para realizar…

A torrada esfriava nas noticias do dia…
Havia sol
Era Londres
E não parecia.

[ACCB]

do blog
http://cleopatramoon.blogs.sapo.pt/

sexta-feira, 6 de maio de 2011

"Fim" de Mário de Sá Carneiro



Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

"Amantes" de José Jorge Letria



Nos grandes amores, existe sempre alguma coisa que os faz vencer as barreiras do tempo e do espaço. É assim que se eternizam e se tornam universais.

Adão e Eva, Pedro I e Inês de Castro, Napoleão e Josefina, Almeida Garrett e a viscondessa da Luz, Oscar Wilde e Lord Alfred Douglas, John Lennon e Yoko Ono, Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis são alguns dos pares que ganharam lugar cativo na galeria dos grandes amantes.

Cada leitor encontrará nas suas histórias um pouco de si e poderá redescobrir aquilo a que Camões chamou "fogo que arde sem se ver".

"Amor é Fogo que Arde Sem se Ver" de Luís Vaz de Camões



Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

William Shakespeare



"Você diz que ama a chuva, mas você abre seu guarda-chuva quando chove. Você diz que ama o sol, mas você procura um ponto de sombra quando o sol brilha. Você diz que ama o vento, mas você fecha as janelas quando o vento sopra. É por isso que eu tenho medo. Você também diz que me ama."

(William Shakespeare)

"O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém."

(William Shakespeare)

"A suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um policia."

(William Shakespeare)

"Os Amigos" de Vinicius de Moraes



Um dia a maioria de nós irá se separar. Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, as descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que compartilhamos...

Saudades até dos momentos de lágrima, da angústia, das vésperas de finais de semana, de finais de ano, enfim... do companheirismo vivido... Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre...

Hoje não tenho mais tanta certeza disso. Em breve cada um vai pra seu lado, seja pelo destino, ou por algum desentendimento, segue a sua vida, talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nos e-mails trocados...

Podemos nos telefonar... conversar algumas bobagens. Aí os dias vão passar... meses... anos... até este contato tornar-se cada vez mais raro. Vamos nos perder no tempo...

Um dia nossos filhos verão aquelas fotografias e perguntarão: Quem são aquelas pessoas? Diremos que eram nossos amigos. E... isso vai doer tanto!!! Foram meus amigos, foi com eles que vivi os melhores anos de minha vida!

A saudade vai apertar bem dentro do peito. Vai dar uma vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente... Quando o nosso grupo estiver incompleto... nos reuniremos para um último adeus de um amigo. E entre lágrima nos abraçaremos...

Faremos promessas de nos encontrar mais vezes daquele dia em diante. Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vidinha isolada do passado... E nos perderemos no tempo...

Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores... mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!!!

"Sete Anos de Pastor Jacob Servia" de Luís Vaz de Camões



Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.



Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

"As Raparigas Boas Vão Para o Céu, as Más Vão Para Todo o Lado" de Ute Ehrhardt



Partamos deste pressuposto: se por um lado, as boas raparigas - cujos objectivos pessoais residem na realização pessoal e profissional dos outros, garantem o seu lugar no céu, já que em vida descuidaram de existir como mulheres e contentaram-se com uma felicidade medíocre ; por outro lado, as más - aquelas que investem na autonomia feminina; que se libertam para o êxito a todos os níveis e sentem verdadeiro prazer em vencer; que usam as virtudes femininas da resistência e tenacidade para ultrapassar os obstáculos impostos por juízos de valor socio-psicológicos; que se afirmam, sem medo algum de enfrentar a agressividade alheia e recorrendo à própria como fonte de energia, no fundo, aquelas que são bem sucedidas nos seus empreendimentos, bom, essas chegam a qualquer lado.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

"Vou Contar-te um Segredo" de Maria Rebelo Pinto




“Pega no telefone e liga-lhe, não tens nada a perder. Diz-lhe que tens saudades dele, que ninguém te faz tão feliz, que os teus dias são secos, frios e áridos, como um deserto imenso, sem oásis nem miragens, sempre que não estão juntos. Pega no telefone e liga-lhe. Se ele não atender, deixa-lhe uma mensagem. Ou então escreve-lhe um sms a dizer que queres estar com ele. Não te alongues nem elabores, os homens nunca percebem o que queres deixar cair nas entrelinhas. Tens de ser clara, directa e incisiva. E não podes ter medo, porque o medo é o maior inimigo do amor. Cada vez que deixares o medo entrar-te nas tuas veias, ele vai gelar-te o sangue e paralisar-te os nervos, ficas transformada numa estátua de sal e morres por dentro. A vida é uma incógnita, hoje estás aqui, amanhã podes ficar doente, ou cair-te um piano em cima quando fores a andar na rua. Ainda há pessoas que atiram pianos pela janela, sabias? Nunca se sabe como será o dia de amanhã, por isso não percas tempo e pega no telefone e liga-lhe. Tenho a certeza que ele te vai ouvir, tenho a certeza que ele te vai ajudar, tenho a certeza que ele, à sua maneira - e é tão estranha a forma como os homens gostam de nós - ainda gosta de ti. Mesmo que já não te ame, ainda gosta de ti, como tu vais aprender a gostar dele, quando a vida te obrigar a desistir deste amor. Ele está longe, mas olha para ti por entre memórias, presentes e flores. À noite, entre sonhos alterados pelo álcool e as drogas leves, tu apareces-lhe na cama e ele volta a sentir o cheiro da tua pele e volta a amar-te com todas as suas forças. Ainda que não acredites, tu viverás para sempre nele, tal como ele vive em ti, na memória das tua células, num passado que pode ser o teu escudo, mesmo que não seja o teu futuro. Pega no telefone e liga-lhe. Fala com ele de coração aberto, diz-lhe o que queres ver, chora se for preciso, pede-lhe que te diga se sim ou se não. Se for preciso, por mais que te custe, pede-lhe para escrever a palavra NÃO. Pede-lhe uma resposta para o teu coração. Mais vale saberes que acabou tudo do que viveres com as laranjas todas no ar, qual malabarista exausto, sem saberes nem como nem quando elas vão cair. Mais vale chorar a tristeza de um amor perdido do que sonhar com um oásis que se tranformou numa miragem. Pega no telefone e liga-lhe. Liga as vezes que forem precisas até conseguires uma resposta, a paz de uma certeza, mesmo que essa certeza não seja a que desejavas ouvir. Mas não fiques quieta, à espera que a vida te traga respostas. a vida é tua, tens de ser tu a vivê-la, não podes deixar que ela passe por ti, tu é que passas por ela. E quando todas as laranjas caírem, apanha-as com cuidado, guarda-as num cesto e muda de profissão. O circo é para quem não tem casa nem país, não é vida para ninguém. Guarda as laranjas num cesto, leva-as para casa e faz um bolo de saudades para esquecer a mágoa. E nunca deixes de sonhar que, um dia, vais encontrar alguém mais próximo e mais generoso, que te ensine a ser feliz, mesmo com todas as pedras que encontrarem no caminho. Larga as laranjas e muda de vida. A vida vai mudar contigo.“



Margarida Rebelo Pinto, “Vou contar-te um segredo”

segunda-feira, 2 de maio de 2011

" Linda Inês " de Luis de Camões




118

Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.

119

Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

120

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

121

Do teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante teus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

122

De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

123

Tirar Inês ao mundo determina
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra üa fraca dama delicada?

124

Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,

125

Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:

126

«Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como co a mãe de Nino já mostraram,
E cos irmãos que Roma edificaram:

127

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar hüa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

128

E se, vencendo a Maura resistência
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A que pera perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Pôe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

129

Pôe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles posso achar a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.»

130

Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra üa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?

131

Qual contra a linda moça Polycena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos, com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha),
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

132

Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

133

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.

134

Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.

135

As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura.
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

OS LUSÍADAS, Luís de Camões

A Pirâmide Vermelha


Os irmãos Kane – Carter e Sadie – podem contar dos dedos nas duas mãos as vezes que já se encontraram depois da morte da sua mãe. Enquanto Carter ficou com o pai, viajando o mundo atrás de artefatos egípcios, Sadie cresceu na casa dos avôs, levando uma vida típica de adolescente londrina. Isso até o dia em que os dois se encontram e saem com seu pai para visitar um museu.

O encontro, que prometia ser uma noite das mais chatas, acabou surpreendendo os irmãos. Em apenas algumas horas os dois descobrem que deuses egípcios são reais, que seu pai libertou o deus Set (e acabou preso em um caixão) e que eles vêm de uma família de sacerdotes. Sem ninguém para explicar o que aconteceu à polícia e com medo de serem mortos por deuses que nem sequer conhecem, eles são regatados por um tio que nunca viram antes e descobrem que existe toda uma sociedade escondida por trás da aparente normalidade do mundo que em vivemos.

Quem é Flávio Monte?



Flávio Monte nasceu em Montalegre,no dia 21 de Junho de 2008, às 0.59 horas da manhã — hora exacta do solstício do Verão. No entanto, a sua alma já mora nessa genuína terra há muitos anos, sem nunca dela se ter apartado, contrariando o corpo, que já andou penando e pena por este mundo fora. Flávio Monte tem nas veias as límpidas e frias águas do Cávado, a firme dureza do Larouco e as mágoas abafadas da gente despecuniada do Barroso, que tem lavrados, no rosto nu, os agrestes sulcos das serranias. O coração telúrico de Flávio Monte ama a sua terra, como um desterrado emigrante eternamente ancorado ao seu berço, que sofre o doloso esquecimento a que estão votadas as suas raízes, genuíno santuário da alma humana. Flávio Monte é escritor e só existe enquanto tal, nas linhas que vai lavrando, num livro de água, que se fará rio…

(Flávio Monte é um pseudónimo!!! XD)

"Colo" de Flávio Monte


"Mãe" - Almada Negreiros


Ah se eu pudesse mãe voltar
Ao meigo calor do teu peito
No teu veludo me aninhar
Voltar a ser tudo e florar
De novo num mundo perfeito

Ah minha mãe se eu pudesse
Ser no teu xaile maciez
Talvez o Tempo me esquecesse
E o Sol quando amanhecesse
Me desse menino outra vez

Se o Tempo mãe quisesse assim
E eu pudesse ter-te sem véu
Seria botão em jardim
E Deus sorriria para mim
De novo no azul do céu

Flávio Monte (inédito)

Dedico a postagem a todas as mães que vivem com os seus filhos (adoptados ou de sangue ) e a todas as que perderam os seus filhos quer seja para a vida, quer seja para morte.

"Ave Branca" de Flávio Monte



Flávio Monte, Livro d'Água

"O Pedinte" de Flávio Monte

O cair da noite trouxe-me alguma melancolia. Do parapeito da minha memória enxerguei recordações tristes, que me toldaram as retinas. Estranhas recordações estas, vindas do futuro. Com o cair da noite, já não sei quem mais anoiteceu: se foi a noite, se fui eu!



À porta da igreja
Estava um velho pedinte
Mão engelhada
Rosto chupado
Corpo curvado
Tremente de frio

À porta da igreja
Estava um velho acinte
Figura alçada
Rosto emproado
Corpo dourado
Fremente de brio

À porta da igreja
Cristo estendia a mão
À mão humana
Rosto chagado
Corpo rasgado
Peito gemebundo

À porta da igreja
O anticristo cristão
Riso sacana
Rosto forjado
Corpo pesado
Despeito profundo

À porta da igreja
A eterna peleja
Deste mundo voraz
Morre Cristo
Come Barrabás


Flávio Monte, Livro d'Água

"Uma Pétala" de Flávio Monte



Pudesse eu dizer o intangível
Dar-te a face do além
Onde os meus olhos são
Pudesse eu mostrar-te o indizível
Que o amanhã tem
Velado na escuridão

E então seria possível

Pudesses tu ao menos
Saber ler o meu olhar
Pudesses tu ao menos
Acreditar no meu acreditar

E então seria possível

Eu poria na tua mão
Numa pétala de emoção
Toda a leveza do ar

Flávio Monte, Livro d'Água

(Esta postagem eu gostava de dedicar ao PP, de quem eu gosto muito, mas é alguém que não sabe "ler os meus sinais". Beijos grandes minha paixão.)

"A Morte do Zé Pinóco" de Luís Costa

Hoje, deu-me para escrever um texto assim, a dar para o brejeiro. Porquê? Porque sim. Apeteceu-me. Gosto de ser um escrevinhador de banda larga. Segundas intenções? Não, nada disso. Tudo muito chão, muito denotativo, muito terra a terra. Se não receio o quê? Pôr em causa a minha reputação? Que reputação? Ora essa!


A Morte do Zé Pinóco
Até aos arrabaldes da sua juventude, o Zé foi um rapaz bem-parecido, faceiro e com o seu quê de marialva. Todavia, com o peso dos anos, a sua cativante figura foi perdendo sainete: o tronco arredondou-se, ainda que moderadamente, os olhos olheiraram-se bastante, o rosto insuflou-se, os cabelos desbotaram, o nariz alongou-se e amorangou-se também. E foi graças a esse longo vermelhote que o Zé conquistou o apodo de Pinóco, uma corruptela de “Pinóquio”, título sabiamente atribuído pelo insuspeito e sagaz olho clínico da criançada de Tolhidos de Baixo.
Até à morte do Mareto, Zé Pinóco foi apenas o trolha biscateiro da aldeia. De colher e talocha na mão, não havia tijolo, tijoleira, parede, cornija ou aresta que lhe fizesse frente. Após a partida do coveiro, passou a acumular as duas funções. Desde então, de pá e picareta na mão, não houve cova, morto nem caixão que lhe metesse medo. Com o tempo, como a aldeia estava velhota e vazante, esse foi sendo cada vez mais o seu ofício. E era por isso que o Zé Pinóco vivia só. Só, mas vivinho da silva! Chegou a ter uma amásia jeitosa, mas não lhe deu rebentos nem felicidade: era como um cubo de gelo da cintura para baixo, segundo constava por lá. Acabou por fugir para as Astúrias com um emigrante que dava ares de rico.
Certo dia, os seis catraios de Tolhidos, que andavam no monte a brincar aos cobóis — cinco bandidos e um xerife — desceram a encosta em grande cavalgada, disparando a má nova aos sete ventos: tinham dado de caras com o Zé Pinóco, morto e mais que morto, estendido no meio do chão, lá no cimo do carvalhal. Juravam a pés juntos que não tinham sido eles, com os revólveres de pinho. O Pinóco já lá estava, antes de andarem aos tiros, “todo estesicado e com as calças no fundo do cu”.
— No fundo do cu?! — exclamou a populaça, em uníssono, botando olhares telescópicos em redor. — Tó-diabo! Cruzes, canhoto!
Aqueles que podiam correr correram, aqueles que só podiam andar foram andando e aqueles que mal se mexiam ficaram-se pelos assentos. Mas mandaram os olhos pela colina acima, de tal modo que ainda se puseram lá no alto primeiro que todos os demais.
Como isto é um blogue, vamos ter de puxar a fita à frente, evitando assim ter de subir a barrigota do monte com aquela gente toda a arfar por todos os lados.
Então lá estava o pobre do Zé, esparregado no chão, que mais parecia uma representação burlesca do “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, com tudo ao léu, mas de pernas algemadas pelas calças. Para além das vergonhas, de anormal apenas se lhe via a nuca ensanguentada, repousando sobre uma áspera almofada de granito. A coisa de metro e meio — visto a olho nu —, estava a burra da D. Patrocínio, amarrada a um carvalho velho.
Após os primeiros gritos de espanto e de horror, os cérebros sequiosos começaram a querer compreender o que ali se passara. Foi uma autêntica zerbada de interrogações, de exclamações e de interjeições. Quem pudera ter feito tal coisa? Quem queria assim tão mal a um home tão bô? Por que diabo lhe haveriam de ter tirado as calças? Às tantas até fora apanhado desprevenido com elas na mão! Valesse-lhes Deus, Jesus Cristo, Virgem Santíssima! Ai! Ui! Oh!
Quando a tarde já descambava no amarelado horizonte, chegou um jipe da GNR, com uma nuvem de poeira a tiracolo e com dois guardas no bojo: o Fernandes e o Antunes. Afastaram o povo, sacaram uma fita do porta-luvas do todo-o-terreno e, de bloco e caneta na mão, puseram-se a tirar medidas a tudo, a perguntar tudo o que sabiam perguntar, a registar tudo e mais alguma, a cofiar os bigodes, a coçar as bochechas, as calças — nas partes mais íntimas —, o cabelo espetado debaixo do boné. Tudo isto no mais abafado silêncio, debaixo dos desolhares mais esbugalhados que alguma vez os haviam escrutinado.
Por fim, a troika militar lá pariu o seu veredicto: ali não houvera crime. Não houvera crime? Com’assim? Atão aquilo fora uma morte natural? Nem a terra os haveria de comer, se eles comessem uma peta daquelas! Que fossem mas era para aqui e para ali, prò diabo que os carregasse, prò carvalho velho lá da aldeia e prà…
— Adiante! — dizem-me os leitores blogosféricos.
Os leitores blogosféricos? Mas o que vem a ser isto? Em primeiro lugar, o termo não existe; em segundo, que eu saiba, os leitores não fazem parte das categorias da narrativa. Mas isto aqui é casa de Joana ou quê?! A conversa já chegou à copeira? Por acaso, até já tinha intenção de dar um pulito no tempo. Caso contrário… Vamos então voltar a puxar a fita à frente, que não temos guarda-chuva para esta saraivada de impropérios rurais. Schhhhhhttt, que está o cabo Antunes a dissertar:
— Aqui, s’hoube um crime, foi o própio morto qu’o cometeu! Tudo o resto foi legítma defeja e, nomeadamente, uma morte imboluntária causada por aquela pedra que che encontra dabaixo da cabeça da bítma. Ora, chegundo acabamos de confirmar, o falechido terá-se posto sobre aquelas três pedras lascas, qu’inda ali estão umas por cima das outras, com intenchão de s’aprobeitar da burra qu’ali está amarrada ò carbalho. Ora, como ela nom terá aprechiiado esse gesto, terá-le dado um couche no peito. Cá estão as pijaduras, igualjinhas aos cascos dela — confirmou, escancarando a camisa do Zé Pinóco. — A força do couche terá-o projectado d’encontro à pedra, qu’acabou por le causar a morte instantana. É por esse motibo, e não por outro, que a bítma tem as calças como tem. É esta a nossa bersão! É o que bamos escreber no ralatório.
E tinham razão os guardas. Eu, que sou o narrador, confirmo tudo, tintim por tintim, sem pôr nem tirar.
MORAL DA HISTÓRIA: não vou dizer.

Luís Costa

"Farrapos" de Flávio Monte


Foto de Gérard Fourel

O negrume da cozinha triste tinha quatro paredes tumulares e uma entrada de luz teimando com a fuligem dos dias derradeiros. No interior do perpianho frio, o olhar ausente de um velho só, perdido e arredio, descaía sobre o repleto vazio de uma mesa tosca que não via. Sobre ela, como se estivessem suspensos no tempo, um ventre de pão, um par de canecas de barro baço e um prato sensaborão faziam sombra no oleado erguido da sombra inerte daquele frio chão.
No forro do jazigo, sob a fazenda puída de um chapéu torcido e amachucado, moravam as retinas de um poeta, forjando metáforas no verso do tempo, que já não soía ser como outrora: uma mesa prenhe de gente; alegres balidos do sangue pululando no ar; uma lareira refulgente; pequenos cupidos a brincar; cinestesias de amor num ninho de sonho exultante de luz e calor.
No limbo dos mundos, um simples felino de estimação, em jeito de caridade, emprestava vida à fiadura falida de um farrapo da Humanidade. Parecia lamber-lhe a recordação: que já fora seda de bandeira, verde farda militar, textura de lenço branco, tenda de saltimbanco, vela inchada sulcando o mar; que já fora o saco do pão, a toalha farta daquela mesa, o aconchego do cobertor, o sobretudo da dor, o burel da inteireza.
À contraluz, sem laivo de poesia, o olhar desumano veste o quadro de panos velhos amarrotados e sós, de andrajos sem serventia, trajos feitos de agonia, trapos negros de nós. À contraluz, uma cortina de esquecimento vai varrendo a dor do nosso olhar. À contraluz, o inferno que não queremos ver: um velho fechado num necrotério, sem refrigério, a desviver.


Flávio Monte, Alto-Relevo

"LIBERDADE", de Fernando Pessoa

Olá, esta postagem é dedicada à minha bff1 (Lisa), que hoje leu este poema, enquanto estávamos fazendo umas pesquisas na biblioteca, estava no livro: "O Meu Primeiro Fernando Pessoa" com texto de Manuela Júdice e ilustrações de Pedro Proença.

O poema intitula - se liberdade e é o seguinte:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...