PORQUE NENHUM DE nóS SE IA IMPORTAR DE MORAR NUMA BIBLIOTECA…

sábado, 18 de junho de 2011

"NADA DE NOVO NO FRONT (um trecho)" de Erich Maria Remarque



Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.

Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.

Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.

Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.

Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.

E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.

Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.

Levanto-me.

Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.

Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".

Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.

"LOBOS E CAPUZES VERMELHOS"



Uma nova versão do conto da chapeuzinho vermelho e o lobo

“Quanto mais doce a língua, mais afiados os dentes.”

Charles Perrault


Era uma vez uma garotinha que foi visitar a sua Vovó. O nome dessa garotinha era Chapeuzinho Vermelho e, mais tarde, ela se tornaria protagonista de um famoso conto de fadas que teve várias versões, umas contadas oralmente, outras escritas (a partir daquelas versões orais) — por escritores tão badalados como os Irmãos Grimm e Charles Perrault e outros nem tão famosos assim.

Mas vamos falar de Chapeuzinho Vermelho. Aquela mesma. Vestido curto, olhos claros, rosto inocente e lindo, um capuz e uma capa vermelhos. Ela carregava uma cesta cheia que ia levar para a casa da Vovó.

O Lobo a viu no instante em que ela entrou no bosque. Ele a desejou mais do que tudo e, com seu desejo, ele condenou-se.

Durante um tempo, o Lobo apenas acompanhou-a, sorrateiramente por entre a densa vegetação, os olhos amarelos faiscando, o pelo eriçado, o desejo aumentando.

Então, ele a abordou; não bruscamente como seria de se esperar, mas suavemente.

— Olá, linda garotinha — disse o Lobo.

— Olá — respondeu ela.

— Não sente medo, andando sozinha pelo bosque, garotinha?

— Por que sentiria? E meu nome não é garotinha, é Chapeuzinho Vermelho.

— Um nome apropriado.

— Isso não importa. Nomes nem sempre são apropriados, são apenas nomes. Agora tenho que ir.

— Por que a pressa?

— Vou para a casa da Vovó. Tenho que levar essa cesta para ela.

— Mas sua companhia me é agradável. Gostaria de conversar mais com a senhorita.

Chapeuzinho Vermelho olhou-o demoradamente, de um modo que deixou o Lobo inquieto. Chapeuzinho passou a língua pelos lábios e sorriu.

— Muito bem. Mas eu realmente não posso demorar muito. Vovó pode ficar preocupada.

— Sei que ela vai entender, quando você disser com quem estava.

—Sim.

Ela despiu-se do capuz e soltou os cabelos, macios, longos, claros como seus olhos. Olhos que eram verdes e azuis dependendo da luz.

A claridade de fim de tarde, filtrada por entre os galhos, era dourada, e o cheiro da relva era fresco e macio.

O Lobo desviou os olhos, o coração acelerado. Foi Chapeuzinho quem primeiro falou:

— Nada a dizer?

— Como? — O Lobo parecia confuso, piscou e, recuperando-se, sorriu. — Sim, naturalmente. Não quer sentar-se?

Ela sentou-se e colocou a cesta de lado. O Lobo deitou-se ao seu lado e sorriu.

— Você é uma garotinha estranha.

— Não sou tão nova quanto aparento.

— Entendo.

— Eu sei.

— Bem, qualquer pessoa teria medo em andar sozinha por esse bosque.

— Eu não. Sabe por quê?

— Não.

— Por que eu sei o que é a coisa mais perigosa do bosque, e também sei que ele não me feriria. Não aqui, não agora. Estou errada?

Um brilho de raiva passou pelos olhos do Lobo, mas tão rápido que provavelmente Chapeuzinho nem percebeu. Ou isso ou simplesmente ignorou-o.

— Não esteja tão certa.

— Mas eu estou.

O Lobo ergueu-se e sumiu por entre as folhagens. Era como se nunca estivesse estado ali. Mas ele ainda a observava, de algum lugar no bosque.

Chapeuzinho ergueu-se, arrumou o capuz, limpou a grama do vestido e pegou sua cesta; ela retomou sem caminho e, em nenhum momento, olhou para traz. O Lobo não percebeu que a mão que não segurava a cesta tremia levemente. O Lobo, então, teve uma idéia, e acelerou o passo. Chegaria primeiro à casa da Vovó.


A Vovó abriu a porta e morreu.

O Lobo não tinha tempo para sutilezas. Ele estava com pressa. Ele apoiou as patas sobre o peito da Vovó e começou a arrancar a pele e a carne da senhora. Uma enorme mancha vermelha como vinho antigo espalhou-se pelo assoalho e tornou-se preto no canto da sala. Ele arrancou o coração dela e colocou-o num prato sobre a mesa, recolheu um copo de sangue e colocou-o ao lado do prato.

Então limpou toda a sujeira, enfiou-se sob os lençóis e sobre a cama da Vovó.

E esperou.

Não teve que esperar muito. Logo ouviu Chapeuzinho Vermelho chamando.

— Entre — disse o Lobo, imitando a voz de uma velha senhora. — Entre, minha querida.

Chapeuzinho Vermelho abriu a porta, alegre, sorrindo, mas logo fez uma careta.

— Que cheiro estranho — disse ela.

— Não é nada. Não está com fome?

— Sim. Mas esse cheiro…

Chapeuzinho Vermelho largou a cesta no chão e disse:

— Para a senhora.

— Dispa-se.

— Sim, Vovó.

Ela obedeceu; tirou o capuz e o vestido, as sapatilhas e o pingente; novamente ela soltou os cabelos e agora seus olhos tinham uma tonalidade clara e suave.

— Queime suas roupas. — mandou o Lobo.

— Sim, Vovó. — Chapeuzinho jogou as roupas no fogo e ficou observando-as. O fogo dançava uma dança secreta.

— Agora, alimente-se. Você vai se sentir melhor.

— Sim, Vovó.

Ela sentou-se à mesa, comeu o coração de sua avó e bebeu o sangue.

— Agora, venha cá.

Ela caminhou até a cama, enfiou-se sob os lençóis e sentiu o pelo eriçado do Lobo. Ela aninhou-se junto a ele.

— Você não é minha avó — disse ela, calmamente.

— Não, não sou — respondeu o Lobo, desanimado. Ela era suave e macia como ele imaginara.

— Eu soube quando bebi o sangue. Pensei que fosse vinho, mas era sangue.

— Era.

— Tudo bem. Estava bom.

Ela passou a mão sobre o pelo do Lobo e fechou os olhos.

— Você me quer agora?

— Sim.

— Vai doer?

— Não muito.

— Eu confio em você — disse Chapeuzinho Vermelho e sorriu para o Lobo. — O que vem depois?

— Depois?

Ele não soube responder. Colocou carinhosamente a pata sobre ela, aproximou a boca da garganta dela e sentiu o cheiro dela. Ele lembrou-se de alguns tipos de flores que eram raras e desabrochavam apenas uma vez por ano; essas flores cheiravam assim. Como algo intocado e puro.

Na lareira, o fogo queimava as cinzas das roupas dela. Chapeuzinho Vermelho fechou os olhos. Na mesma hora a porta do guarda-roupas abriu-se e o corpo da Vovó, as entranhas penduradas e o rosto desfigurado numa expressão de surpresa e horror, parte da caveira aparecendo, apareceu como que para observar a cena com olhos esbugalhados.

— Que eu morrer, quero dizer. O que vem depois? — perguntou Chapeuzinho Vermelho.

— Não sei — teve que admitir o Lobo.

O Lobo beijou Chapeuzinho Vermelho primeiro, depois a matou rapidamente. Ficou com o focinho enfiado na ferida que lhe fizera na garganta, como se não quisesse mais sair de dentro dela.


Era alta madrugada e a lareira iluminava parcialmente o quarto. O Lobo estava sentado no chão, olhando pesarosamente para a cama. Chapeuzinho Vermelho, nua e morta, estava estendida sobre lençóis brancos manchados de sangue, os olhos fechados, calma como se estivesse dormindo. O Lobo não conseguira devorá-la. Mas por quê?, perguntava-se. Por quê? Ele não queria olhar para Chapeuzinho, mas não conseguia desviar os olhos.

— Por quê? — perguntava-se.

— Não é óbvio, animal estúpido? — disse a velha dentro do guarda-roupas. O Esforço de falar fizera escorrer sangue como baba de sua boca escancarada.

— Você deveria estar morta.

— Talvez. Mas minha neta não.

— Eu… sinto muito.

— Meio tarde para isso, não?

— Espere. Os mortos não falam.

— Não. Você está louco. É apenas isso.

— E o que importa?

— Você deve enterrá-la.



— Para que ela descanse em paz — insistiu a Vovó morta. — Você deve fazê-lo.


Com uma pá encontrada nos fundos e sob a lua cheia que era como um olho cheio de cicatrizes, ele cavou uma cova. Observado pelas criaturas do bosque, que se mantinham ocultas no escuro, pois ele era o Lobo, o ser mais perigoso do bosque, e todos o temiam, ele trouxe Chapeuzinho e colocou-a dentro da cova. Ele a cobriu de terra e voltou para dentro da cabana.

Sentou-se na cama, ergueu-se, pegou os lençóis e jogou-os no fogo da lareira; então fez uma tocha e começou a colocar fogo nos móveis e na madeira da casa.

Depois ficou observando o fogo erguer-se e consumir a casa rapidamente, como vermes na carne apodrecida.


Naquela noite, o Lobo subiu numa colina e uivou tristemente; mas dessa vez não era um lamento para a lua… Não, o lobo chorava por Chapeuzinho Vermelho.


Nessa noite, quando finalmente dormiu, o Lobo sonhou com seios cortados e flores brancas escurecendo rapidamente em um carmim que gotejava e gotejava. Ele andava por entre as flores e era como uma sombra maldita num lugar de luz e serenidade. Mas era uma paz falsa. Com seus sentidos aguçados ele podia perceber o mal, oculto nos cantos, entre as folhagens, na grama, nos espinhos que lhe arranhavam as patas. Ele exibiu os dentes, pontiagudos e a saliva acida. Começou a correr na direção do bosque e por um segundo viu uma mão acenando para ele, uma figura encapuzada (um capuz vermelho) ao longe. Então a figura desapareceu e ele duvidou que realmente a tivesse visto.


Ao amanhecer, ele voltou à casa da Vovó e lá havia apenas madeira queimada e cinzas, o esqueleto chamuscado de uma casa e nada mais. O Lobo deu a volta na casa e ficou diante da cova onde enterrara Chapeuzinho Vermelho. Os olhos dele estreitaram-se e ele recuou instintivamente. A cova fora violada, a terra revolvida. Ele farejou e escavou. Chapeuzinho Vermelho não estava lá.


Ele procurou pelo bosque e todos os habitantes da floresta, animais ou não, todos se esconderam. Então uma velha coruja aproximou-se e pousou num galho alto o suficiente para fugir se ele a atacasse e lhe contou o que acontecera.

— Foi tarde da noite — contou a Coruja. — Eu ouvi sons que não eram o da madeira crepitando no fogo ou mesmo carne velha cozinhando. Não. O fogo já se extinguira. Restara apenas uma fumaça de cheiro azedo subindo no ar. Era outro som. Como um eco de desespero. Era um cavar. Um cavar horrendo, cheio de angústia e terror. Não demorou e percebi de onde vinha. Vinha da cova de Chapeuzinho Vermelho. Seu tolo. Ela estava viva e tentava sair!

— Não. Impossível. Acha mesmo, Coruja, que não sei distinguir um corpo vivo de um morto?

— Sei que você bem o sabe, sim. Mas morta, eu lhe digo, ela não estava.

O Lobo estremeceu.

— Mas como é possível? — perguntou ele.

— E o que não é?



— Logo eu vi as pontas dos dedos de Chapeuzinho e o rosto dela e ela estava gritando e gritando e chorando. Ela arrastou-se para fora da cova, cuspindo terra, trêmula. Encolheu-se e ficou assim durante um tempo longo demais, não sei quanto. Então, ela ergueu-se e saiu da clareira e entrou no bosque. Eu a segui. Ela cambaleava entre as raízes até alcançar a trilha. Parecia desorientada. Uma figura estranha, coberta de terra e sangue seco. Ela caminhou até a estrada, onde caiu e ficou lá estendida, os olhos fitando vazios o céu, enquanto ao longe um lobo uivava… até que um carro passou e a levou.


O Lobo nada disse. A imagem de Chapeuzinho lutando para sair da cova o perseguia.


Mais tarde, quando a bala dos homens entrasse em sua carne e ele caísse no rio gelado, sendo arrastado pela forte correnteza, enquanto as balas ainda lhe eram disparadas, ele se lembraria do dia em que, depois de muitos anos, ele decidira novamente vestir a roupa e a aparência dos homens para ir à Vila dos Cantos à procura da garota que ele assassinara.


O Lobo chegou à vila ao amanhecer de um dia cheio de nuvens carregadas e chuva fina e fria. Encolhido dentro de um sobretudo surrado e fora de moda, ele atravessou a pequena ponte que era a entrada para a vila. Peixes nadavam e pulavam na água clara. Do outro lado da ponte, havia uma praça e na praça, uma igreja, bancos, árvores e um pub. O nome do pub era “A Toca” e o Lobo achou aquilo um bom presságio. Entrou no pub e o mesmo estava quase vazio. O Lobo foi até o balcão e um homem muito magro e muito alto perguntou-lhe o que queria.

— Algo para esquentar — disse o Lobo.

O homem assentiu e serviu-lhe uma dose de algo que o Lobo achou ácido demais, mas que realmente espantou um pouco do frio. Ele olhou ao redor. Dois homens jogavam xadrez de modo demasiadamente lento, como duas estátuas sem a menor vontade de mover-se. Uma mulher de roupas e gestos vulgares olhava triste um quadro na parede; no quadro, uma casa feita de doces. A mulher chorava silenciosamente.

O homem alto disse alguma coisa que ele não entendeu.

— Como?

— Perguntei se está só de passagem, veio visitar alguém ou o quê? — perguntou o homem, educadamente.

O Lobo pensou em dizer que estava só de passagem, mas pensou melhor:

— Vim visitar alguém, mas estou com um problema. Não sei onde essa pessoa mora. Talvez possa me ajudar.

— Como assim? Vem visitar uma pessoa e não sabe onde ela mora?

— Faz muitos anos que estive aqui — disse o Lobo, refletindo que isso era verdade.

— Muito bem — disse o homem alto, meio desconfiado. — Quem?

— Chapeuzinho Vermelho.

A expressão de desconfiança do homem mudou para pesar.

— Então você não sabe?

— O quê?

— Algo horrível aconteceu a ela.

— O que aconteceu?

— Ela foi atacada por ladrões quando foi visitar a avó dela. Os malditos a largaram no meio da estrada, em estado deplorável. E queimaram a casa da avó da menina. Pode acreditar? Na minha opinião, deviam ser alguns desses loucos que iam visitar a velha às vezes. Dizem que ela era bruxa, então se morreu queimada, foi algo bem merecido. Porém, Chapeuzinho não tinha que ver isso. Mas você é o quê? Algum parente?

— Isso. Um parente.

O homem alto assentiu, ensinou o caminho para o Lobo e disse que não precisava pagar a dose, é por conta da casa. O Lobo agradeceu e virou-se. Quase bateu de cara com a mulher que antes olhara o quadro. Os olhos dela ainda estavam úmidos.

— Eu o conheço? — perguntou ela. Ela o olhava atentamente, tentando lembrar de onde conhecia aquele homem de roupa surrada e modos estranhos. Sim, ele não era realmente estranho? O jeito como ele olhava tudo, como caminhava. Como se não se lembrasse mais o modo certo de fazê-lo.

— Não creio — respondeu ele, e saiu pela porta.


A casa de Chapeuzinho Vermelho ficava no fim de uma rua que subia num declive quase totalmente vertical, mas o Lobo, acostumado a correr no bosque por longas distâncias, não teve dificuldade em alcançá-la. Ele não bateu na porta imediatamente. Ouviu um rosnar e quando olhou, viu um enorme cachorro preto, o pelo curto e liso, latindo para ele. O Lobo exibiu os dentes e deixou o cachorro vislumbrar seus olhos amarelos. Foi o bastante para que o cachorro saísse correndo.

Quando tornou a olhar para a porta, levou um susto. Uma mulher estava parada na porta, olhando-o curiosa. A mãe de Chapeuzinho, adivinhou o Lobo.

— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou ela.

— Sim, quer dizer, estou procurando Chapeuzinho Vermelho.

A mulher olhou-o.

— E quem é o senhor? — perguntou ela.

— Mamãe?

Ele reconheceu a voz de Chapeuzinho e estremeceu. A chuva batia em seu chapéu e ele encolheu-se mais ainda.

— Entre — disse a mulher, e subiu os degraus que levavam ao andar superior.

O Lobo entrou e era uma sala espaçosa e confortável. Um degrau a separava da sala de jantar, onde havia uma enorme mesa de carvalho. Sobre a mesa, uma espingarda. O Lobo andou até a arma e pegou-a.

Estava examinando-a quando ouviu uma voz ríspida às suas costas:

— Solte-a já.

Ele virou-se. Um homem estava parado na porta, segurando uma caixa de balas e o olhava carrancudo. O Lobo soltou a arma.

— Desculpe. Eu não pretendia… Estava apenas admirando-a.

O homem passou por ele, colocou a caixa de balas sobre a mesa, ao lado da espingarda, e perguntou:

— Quem é o senhor?

— Amigo de Chapeuzinho.

— Estranho. Eu nunca o vi. Qual o seu nome?

— Wolfson.

— Nome engraçado.

— Nomes são apenas nomes.

— É verdade.

— Sua filha me disse isso.

— Como sabe que ela é minha filha?

— Ela o descreveu, certa vez.

— De onde a conhece?

— Ela disse para você subir — disse a mãe de Chapeuzinho, parada na escada.

Ele subiu. O quarto dela era o segundo no corredor. Chapeuzinho Vermelho estava no peitoril da janela, os joelhos apoiando o queixo, e olhava para a rua. A mãe de Chapeuzinho fechou a porta e o Lobo ouviu-a afastar-se.

— Não achei que o veria de novo — disse ela.

— Pensei que estivesse morta.

Ela virou-se para ele. Ainda estava pálida. Não havia nenhuma cicatriz em seu pescoço, apenas em seus olhos. Ela olhou-o com tristeza.

— Você cuidou para que isso fosse verdade, não foi?

Ambos falavam baixo, inconscientemente.

— Sim — respondeu ele, encabulado.

— Mas eu não morro tão fácil. Como pode ver, eu cicatrizo rapidamente também. Mas acordar dentro de uma sepultura, bem, não é fácil para uma garota de dezesseis anos. Não é fácil para ninguém, de qualquer modo.

— Sinto muito.

— Eu sei que sente, lobinho.

Ele estremeceu.

— Infelizmente eu não morri. Alguma coisa que minha avó fez comigo, imagino. Desde que eu era pequena, meus machucados, por mais que parecessem sérios, saravam depressa. Ela era uma bruxa, você deve saber. A minha avó.

— Ouvi algo.

— Você veio me matar?

Ele demorou a responder.

— Não sei — disse, finalmente.

— Não sabe ou não pode?

Ela desceu da janela, sentou-se na cama e olhou para o espelho no outro lado do quarto.

— Você… — começou a dizer o Lobo.

— Eu queria morrer, sabe. Por isso eu fiz tudo que me mandou fazer na casa da minha avó.

— Mas por quê?

— Por que eu queria morrer? Esqueça isso.

— Foi sua avó que me disse para enterrá-la. Levei um susto danado. Ela estava morta e falando comigo.

— Você deve ter imaginado.

— Talvez — disse ele, mas duvidava.

Os dois ficaram em silêncio. O Lobo andou até a janela. Depois virou-se e examinou o quarto atentamente. Havia um calendário perto do espelho; uma imagem de um lago profundo e a data: 18 de novembro de 1917.

— Não imaginei que tivesse passado tantos anos — Ele se referia ao tempo em que abandonara a humanidade e se tornara lobo. Ele a olhou. — Como me reconheceu?

— Lobo em pele de homem. Eu o reconheceria de qualquer modo. Em qualquer lugar.

— Eu vou embora.

— Por que veio aqui?

— Não sei. Talvez você seja tão bruxa quanto sua avó e tenha me enfeitiçado — disse ele, meio brincando, meio sério.

Ela sorriu, andou até ele e beijou-o, um beijo quente, demorado.

— Esse é o único feitiço que eu conheço.



— Eu ainda tenho seu cheiro em mim — ela disse e afastou-se. — Desde aquela noite.

— Eu vou embora.

— Você volta para me ver?

— … Não. Esse lugar é perigoso demais para os da minha espécie.

— Então eu irei vê-lo no bosque.

— Eles permitirão que você volte lá, depois do que aconteceu?

— Eles não precisam saber.

A mãe de Chapeuzinho Vermelho entrou sem bater e encarou-os, desconfiada.

— Seu pai está inquieto com vocês dois aqui em cima, sozinhos — disse ela.

— Já estou de saída — disse o Lobo.


Na semana seguinte, Chapeuzinho Vermelho foi encontrar-se com o Lobo no bosque. Ela havia dito à sua mãe que iria dar uma volta pela cidade e, sim, mãe, vou me manter longe do bosque.

Quando alcançou a trilha que ia dar na casa de sua avó, Chapeuzinho soube que estava sendo observada. O Lobo saltou diante dela, o pelo escuro, os olhos amarelos, e observou-a atentamente.

— Você não me assusta – disse ela.

— Eu sei.

Ele farejou o ar.

— O que foi?

— Você foi seguida.

— Tem certeza? Eu tomei bastante cuidado e…

A bala acertou-o no ombro e ele ganiu. Chapeuzinho gritou. O Lobo caiu, pesadamente. Então, ergueu-se depressa.

Cavalos aproximavam-se rapidamente.

— Fuja — gritou Chapeuzinho.

Ele correu, um tanto lento por causa do ferimento, mas ainda rápido. As balas passavam por ele, arrancando lascas de árvores e terra. Ele olhou para traz e viu os cavalos e os homens armados sobre eles. Ele correu como nunca correra antes e, apesar daquele bosque ser sua morada a centenas de anos e o Lobo conhece-lo como a si mesmo, eles o encurralaram no alto de um precipício. Ele olhou para baixo e viu um rio sinuoso e que seguia a perder de vista. Olhou para traz e viu os homens armados chegando depressa. E saltou.

Os homens desceram dos cavalos e ainda estavam atirando nele quando ele atingiu a água e foi arrastado pela força da água.


Chapeuzinho Vermelho, de joelhos no meio da trilha, chorava.

Noite. Lua cheia. Não há uivos essa noite no bosque.

Esse texto foi retirado do Não Diga Nada (http://naodiganada.blogspot.com/).

"Chapeuzinho Vermelho" de Millôr Fernandes



Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

Extraído do livro "Lições de Um Ignorante", José Álvaro Editor - Rio de Janeiro, 1967, pág. 31

"Mulheres" de Manuel Bandeira



Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! Fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...

És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa e tinham cara de pau)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

"Chuva" de Jorge Fernando



As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir
Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir
São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder
Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer
A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera
Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera
A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade

segunda-feira, 13 de junho de 2011

"Prefiro Rosas, meu Amor, à Pátria" de Fernando Pessoa



Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

123 Anos de Fernando Pessoa



Fernando António Nogueira Pessoa, de nome completo, nasceu a 13 de Junho de 1888, em Lisboa e faleceu a 30 de Novembro de 1935, com 47 anos, de cirrose hepática.
Como poeta, Fernando Pessoa desdobrou-se em várias personagens e criou heterónimos como Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, entre outros. Em virtude de ter vivido na África do Sul, entre os seis e os 17 anos, escreveu ainda em inglês. O crítico literário norte-americano Harold Bloom considerou a sua obra “legado da língua portuguesa no mundo”.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

"O Dinheiro Não Se Come" Mensagem Assinada Pela Greenpeace



Quando a última árvore tiver caído,
Quando o último rio tiver secado,
Quando o último peixe for pescado,
Vocês vão entender que o dinheiro não se come.

(Essa frase não é da Greenpeace, mas faz parte de uma carta enviada ao presidente Benjamim Franclin por um chefe da tribo Siux depois de a sua tribo ter sido obrigada a sair das suas terras para que os fazendeiros pudessem escoar a sua produção pelas terras que eram dos índios.)

"Sinto Falta..." de Ana Sofia Miranda



Sinto falta do teu perfume,
Sinto falta do teu olhar perto do meu,
Sinto falta dos teus abraços.
Sinto falta dos teus lábios a tocarem nos meus,
Sinto falta da tua companhia,
Sinto falta de algo dentro de mim,
Sinto falta de ti.

"Um Mundo Só Meu!" de B-Dynasty



Sirvo-me de uma fonte imaginária que nunca seca,
Transborda de ideias fluidas que liberto ao imaginar,
São gotas num mar de chuva, de água limpa e água turva,
Que me eleva a um mais alto patamar.

Se sonho, escrevo ou desenho, se sinto, rio ou choro,
Se emito uma respiração vibrante reluzente em cada poro,
Então orgulho-me, feliz como ao encontro de um tesouro,
Num dia preenchido pelo crocitar do corvo.

É quando atingo uma paz de espírito que nem o vácuo suporta,
Como navegar no ondular de uma onda morta.

Imagino, penso, crio, faço num imenso denso frio,
Pois a minha mente quente, é lareira para este brio.

Sou observador atento, qestiono tudo o que é físico,
Sou estrela fantasista, num mundo de encantar,
Sou Deus, sou tudo o que me é amado,
Sou, ou não, mas gosto de o imaginar.

Então a fonte imaginária nunca seca, já o disse,
Nunca morre à nascença, nem se expira de velhice, é eterna,
Transcendente ao próprio tempo,
Como pão para a pobreza, esta serve de alimento.

Teço simples teias na complexidade da mente,
E vejo-as florescer num jardim encandescente,
Somos nós, jardim de ideias, para sempre,
E lado a lado, ombro a ombro, delas fiquei dependente.